Pesquisar este blog

terça-feira, dezembro 23

FERNANDO PESSOA


“Vem sentar-te comigo..., à beira do rio
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa e não estamos de mãos dadas
(Enlacemos as mãos)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nada regressa
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado
Mais longe que os deuses

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes
Sem amores, nem ódio, nem paixões que levantam a voz
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria
E sempre teria o mar

Amemos-nos tranquilamente, pensando que podíamos
Se quiséssemos trocar beijos, abraços e carícias
Mas vale mais estarmos sentados um ao pé do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo. E que seu perfume suavize o momento
Este momento em que, sossegadamente não cremos em nada
Pagãos inocentes da decadência

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda, te fira ou te mova
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais que crianças

E se antes do que eu levares o óbolo do barqueiro sombrio
Eu nada terei de sofrer ao lembrar-me de ti
Ser-me-ás suave a memória lembrando-te assim: à beira do rio
Pagão triste e com flores no regaço “

(Ricardo Reis – Fernando Pessoa)