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quinta-feira, junho 23

 
 
 
 
No mais fundo de ti,eu sei que traí, mãe!
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos...
Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -,às vezes ainda sou o menina
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:"Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
"Mas - tu sabes! - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu...
Eu saí da moldura,dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...

até um dia mãe...

Eugenio de Andrade


"lembrar."gora é tentar de vez me libertaOlha, essa saudade
Que maltrata o meu peito
É ilusão
E por ser ilusão é mais difícil de apagar

Ela vai me consumindo lentamente
Ela brinca com meu peito
E leva sempre a melhor

Eu quis fazer com ela um contrato de separação
Negou-se, então, a aceitar
Sorrindo da minha ilusão

Só tem um jeito agora
É tentar de vez me libertar
Brigar com a lembrança
Pra não mais lembrarr. Brigar com a lembrança pra não mais lembrar."
Lya Luft - (Pensar é transgredir)

"Certa vez errei uma tecla do computador e em lugar de "perdas" saiu "peras". Eu ia corrigir, mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores... Dessa maneira acontecem mal-entendidos: amizades se perturbam, amores se rompem, pessoas se desencontram e magoam... Palavras esvoaçam como bilhetes, sinais de fumaça ou borboletas perdidas... Então nem sempre que alguém dizia "flor" o outro pensava "flor"? E podia entender "pedra"? Nada era simples. Para mim as palavras eram objetos mágicos, mas via que podiam ser traiçoeiros. Belos de olhar, mas duros, com arestas cortantes; caramelos de vários sabores que eu deixava rolar na boca com delícia, porém a gente podia se engasgar, até morrer. Não era só prazer a linguagem: peras, perdas, fazer falta, estar em falta ou sentir falta. Desacordo, desconserto. Ambivalentes como nós, palavras preparam armadilhas ou abrem portas de sedução. Embalam ou derrubam, enredam em doces laços, ou nos matam dolorosamente -- como punhais."


Bem que eu queria dormir, mas a culpa chamou-me a noite inteira. Eu preferia fugir, mas a morte arranhava a minha porta. Devia esquecer o amor, mas esse não desiste de mim: me agarra, me devora e me vomita no alto da sacada. (Cada vez que acordo, perdi um novo pedaço: ouço os cacos rolando o tempo todo na escada.)
Lya Luft
São três os bichos
que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz.
Porque a noite as usa fechadas, ao serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando,
mandriosa, inventadora de sombras. A manhã, essa, é um caracol. Sobe pelos muros,
desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do tempo.
Mia Couto






"Eu me lembrei que fugir, às vezes, é necessário para recuperar o fôlego. Para restaurar a força."

(Ana Jácomo)


"A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastanto uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. (...) A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto se acostumar, se perde de si mesma."

(Marina Colasanti)

terça-feira, junho 21

  O GRITO
                                                    Jorge Bichuetti

Socado no pilão:
alma triturada
uiva sibilante
na agonia da opressão...

Índios, escravos, meninos,
na senzala do abandono
rugem de fome e de sede
co'ganas
de gritar: não!...

Pés feridos, mão estendida,
a liberdade esmola;
nas ruas e nas esquinas,
pede 
ventos de compaixão...

segunda-feira, junho 20

O amor é o ridículo da vida. A gente procura nele uma pureza impossível, uma pureza que está sempre se pondo,indo embora. A vida veio e me levou com ela. Sorte é se abandonar e aceitar essa vaga ideia de paraiso que nos persegue, bonita e breve, como borboletas que só vivem 24 horas. Morrer não doi."

Cazuza
Estou cansada de mentiras, de realidade, de telefone mudo e de músicas sem letra.(...)
(...)Me deixa ser egoísta. Me deixa fazer você entender que eu gosto de mim e quero ser preservada. Me deixa de fora de suas mentiras e dessa conversa fiada. Eu sou uma espécie quase em extinção: eu acredito nas pessoas. E eu quase acredito em você. Não precisa gostar de mim se não quiser. Mas não me faça acreditar que é amor, caso seja apenas derivado. Não me diga nada. (Ou me diga tudo). Não me olhe assim, você diz tanta coisa com um olhar. E olhar mente, eu sei! E eu sei por que aprendi. Também sei mentir das formas mais perversas e doces possíveis. (Sabia?) Mas meu coração está rouco agora. GRAVE! Você percebe? Escuta só como ele bate. O tumtumtum não é mais o mesmo.

Fernanda de Mello

Não roube os meu desejos mais secretos.
Deixe-os guardados e calmos no canto que os escondi.
Deixe os meus suspiros e arrependimentos em tranqüilidade aparente.
Não é a hora exata? Não somos exatos!
A exatidão me aborrece. A compreensão me deprime.
Sua solidão me enlouquece."
"...você me provoca,você me pertuba.
Joga água e sai correndo.
Atira a pedra e me acerta de raspão.
Me espia no escuro e mostra a língua.
Me xinga.Me atiça. Invade o meu sossego. Meu refúgio.
Pisa no meu ninho com os sapatos sujos. Na minha toca.
Sem saber o meu tamanho, até onde vai meu bote, você me provoca achando que não há perigo. Sem conhecer a força da minha mordida,o tamanho dos caninos.
Você me provoca sem esperar a picada.
Sem saber que ainda não inventaram antídoto pro meu tipo de veneno..."

 "Sou dramática, intensa, transitória e tenho uma alegria em mim que quase me deixa exausta. Eu sei sorrir com os olhos e gargalhar com o corpo todo. Eu sei chorar toda encolhida abraçando as pernas. Por isso, não me venha com meios-termos, com mais ou menos ou qualquer coisa. Venha a mim com corpo, alma, vísceras, e falta de ar."

Clarice Lispector
Tenho um quarto vazio por dentro."

(Caio Fernando Abreu, em: Triângulo das Águas, editora L&PM – pocket, página 71)