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quarta-feira, julho 29


Onde está o chão que estava aqui?

Procuro alguém que queira receber a minha Liberdade।Em troca, peço a sua Liberdade, para que cuidemos um do outro, como jardineiros cuidam das mudas que hão de florir.Será preciso regar cuidadosamente, para que as raízes não se soltem ao vento. Prometo moldá-la com as mais belas e livres formas, e você prometerá protegê-la do frio e calor intensos, em seu colo aconchegante.E quando florirem, juntas, em fusão perfeita, formarão uma única Liberdade: infinita.Aceita?



Existe um lugar onde termina a calçada
E antes de começar a rua,
E há a erva cresce macia e branca,
E há o sol queima carmesim brilhante,
E há a lua-ave descansa de seu vôo
Para arrefecer no hortelã vento.

Vamos deixar este lugar onde sopra a fumaça preta
E a rua escura ventos e curvas.
Passados os poços onde as flores crescem asfalto
Vamos caminhar com um passeio que é medido e lento,
E vê-se o giz branco setas ir
Para o lugar onde termina o passeio.

Sim iremos caminhar com um passeio que é medido e lento,
E nós vamos para onde o giz branco-setas ir,
Para as crianças, que marca, e as crianças, eles sabem
O local onde termina o passeio.

Ends Shel Silverstein

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

terça-feira, julho 28


Durante anos, acreditei que o sono mata.
E como o sono me estimulasse a vontade de morrer, raras foram as noites em que não estreei uma morte nova.
Com a prática, aprendi a prolongar a morte, adiando a agonia do despertar.
Para minha surpresa, ou decepção, a manhã confrontava-me com a extensão da empresa.
Vítima e espectador da minha vítima, acabei por vulgarizar a morte, com prejuízo do repouso que o sono me exigia.
Hoje durmo com uma facilidade espantosa e, raramente, me lembro de adormecer.
Ou sonhar.
Sem que eu ou a morte tenhamos assinado qualquer espécie de tréguas.

Jorge Fallorca, in "longe do mundo" frenesi (2004)

Quando te afastas
Uma fina poeira de gelo
Cobre os ramos de todas as árvores
E delicadamente Atravessas os destroços
Em que deixas tudo o que amaste.
Luís Falcão, in "pétalas negras ardem nos teus olhos" assírio & alvim (2007)


És como a flor dos agonizantes

que é invisível mas seu aroma entra

na sombra nasal e é a delícia,

tudo na vida, durante algum tempo.

Antonio Gamoneda, in "livro do frio" assírio & alvim, 1999


Do fundo da noite que me envolve
Escura como o inferno de ponta a ponta
Agradeço a qualquer Deus que seja
Pela minha alma inconquistável

Nas garras dos destino
Eu não vacilei nem chorei
Sob as pancadas do acaso
Minha cabeça está sangrenta, mas ereta

Além deste lugar tenebroso
Só se percebe o horror das trevas
E ainda assim, o tempo,
Encontra, e há de encontrar-me, destemido

Não importa quão estreito o portão
Nem quão pesado os ensinamentos
Eu sou o mestre do meu destino
Eu sou o comandante da minha alma

William Ernest Henley - 1849-1903

"Cantar, só ,não fazia mal, não era pecado। As estradas cantavam.E ele achava muitas coisas bonitas,e tudo era mesmo muito bonito, como todas as coisas nos caminhos do sertão."
(João Guimarães Rosa,no conto "A HORA E A VEZ de Augusto Matraga")

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces

Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.

No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida

E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.

Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.

Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados

Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada

Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.

Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.

Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.

Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da

noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.

Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.

E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.

Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.

Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.

E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.

Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.

Cora Coralina

Rosas que já vos fostes, desfolhadas
Por mãos também que Já foram, rosas
Suaves e tristes! Rosas que as amadas,
Mortas também, beijaram suspirosas...

Umas rubras e vãs, outras fanadas,
Mas cheias do calor das amorosas...
Sois aroma de almofadas silenciosas,
Onde dormiram tranças destrançadas.

Umas brancas, da cor das pobres freiras,
Outras cheias de viço de frescura,
Rosas primeiras, rosas derradeiras!

Ai! Quem melhor que vós, se a dor perdura,
Para coroar-me, rosas passageiras,
O sonho que se esvai na desventura ?

Alphonsus de Guimarães

A Vida é uma vitrina de tecidos.
A gente, por instantes,
fica de olhos perdidos
na beleza das telas deslumbrantes.
Depois, entra na loja e vai comprar.
Caixeirinha gentil, a Ilusão
vem vender ao balcão
e não se cansa de mostrar,
não se cansa
de exibir delicados,
rendilhados,
leves panos de Sonho e de Esperança.
As mãos tocam de leve
na leveza das telas.
Não vá o gesto, por mais breve,
esgarçar uma delas!
Todas tão lindas! Mas a que fascina
não está ali na grande confusão
das peças espalhadas no balcão.
E a gente diz,
num ar feliz:
"Levo daquela rósea, muito fina,
exposta na vitrina."
Logo o Destino vem (da loja é o dono)
e fala sobranceiro, com entono:
"É artigo raro.
Marca, padrão e cor: - Felicidade.
É um artigo de alta qualidade
o mais caro
de todos os tecidos.
São cortes especiais...e estão vendidos!"
...................................................................
E a gente vai comprar do áspero pano
que se encontra na seção do Desengano.

Graciette Salmon (Poetisa Paranaense)

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
(Hilda Hist)

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
.
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes


ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos


E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes, por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da Dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa

Lembrem-se:
...........O silêncio ajuda o assassino, nunca as suas vítimas.

Professor Elie Wiesel

Este mundo não presta,venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão:sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos se dependentes.

José Saramago


Que língua estrangeira é esta

que me roça a flor do ouvido,

um vozear sem sentido

que nenhum sentido empresta?

Sussuro de vago tom,

reminiscência de esfinge,

voz que se julga, ou se finge

sentindo, e é apenas som.

Contracenamos por gestos,

por sorrisos, por olhares,

rodeios protocolares,

cumprimentos indigestos,

firmes aperto de mão,

passeiso de braço dado,

mas por som articulado,

por palavras, isso não.

Antes morrer atolado

na mais negra solidão.
(Antônio Gedeão)



Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse

ou se ao menos me desses as mãos como quem beija

e não partisses, assim, empurrando o vento

com o coração aflito, sufocado de segredos;

se ao menos percebesses que eram nossos

todos os bancos de todos os jardins;

se ao menos guardasses nos teus gestos essa bandeira de lirismo

que ambos empunhamos na cidade clandestina

Quando as manhas cheiravam a óleo e a flores

e o inverno espreitava ainda nas esquinas como uma criança tremendo;

se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos

para guardar o teu corpo;

se ao menos tivesses quebrado o riso frio dos espelhos

onde o teu rosto se esconde no meu rosto

e a minha boca lembra a tua despedida,

talvez que, hoje, meu amor, eu pudesse esquecer

essa cor perdida nos teus olhos.

(Joaquim Pessoa)

Não foi Guevarra, mãe, quem te rasgou
Com os punhais do frio pela manhã.
Foi quando eu te feri que um cão ladrou.
Das rosas veio um cheiro a hortelã!

Nos mastros adejavam as gaivotas.
Era Fevereiro. E a noite um pesadelo.
Da chuva que caía algumas gotas
Quiseram repousar no teu cabelo.

E eu nasci. No quarto ninguém estava.
À porta só a chuva é que teimava
Em molhar os lençóis da tua cama.

Não foi Guevarra, mãe, quem tu pariste
Foi um grito do povo azul e triste
Na noite em que chorei luas de lama.
(Joaquim Pessoa)

segunda-feira, julho 27


Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doida ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fronte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: Filha, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão, que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, minha filha, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu.

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Dize que eu parta, ó mãe, para a saudade.
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.

Vinícius de Moraes

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...

Pequeno poema - Sebastião da Gama (1924 - 1952)

Como é possível perder-te sem nunca te ter achado ponta a dos meus dedos sem ter formado o afagos em termos sido a cidade nem termos rasgado pedras sem descobrirmos a cor nem o interior da erva.
Como é possível perder-te sem nunca te ter achado minha raiva de ternura meu ódio de conhecer-te minha alegria profunda.
In “Vozes e Olhares Femininos”
Edições Afrontamento – Porto – 2001
Maria Tereza Horta

Encosto o meu dedo em sua pele, mas ela não afunda। Não é possível। Desabotôo a sua camisa e deito a minha cabeça em seu peito, meu homem de lata। Diante do novo segredo, eu queria chorar, mas posso enferrujá-lo। Então, como viveria em paz sem a sua armadura? Sem nada entender, você se vira e vai embora। E só então eu percebo: a sua armadura é furada, meu amor। Nas centenas de furos sobre a lata, vai aguando todas as plantinhas ao seu redor।Você é, na verdade, um lindo regador...


Rita Apoema

“E do meu corpo os leves arabescosVão-te envolvendo em círculos dantescosFelinamente, em voluptuosas danças…

”Florbela Espanca


Responder a perguntas não respondo।Perguntas impossíveis não pergunto।Só do que sei de mim aos outros conto:de mim, atravessada pelo mundo।Toda a minha experiência, o meu estudo, sou eu mesma que,em solidão paciente,recolho do que em mim observo e escuto muda lição,que ninguém mais entende।O que sou vale mais do que o meu canto.Apenas em linguagem vou dizendo caminhos invisíveis por onde ando.Tudo é secreto e de remoto exemplo.Todos ouvimos, longe, um apelo .E todos somos pura flor de vento.
Mike Monette

“Não, não ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro, sou definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto - se tomada com cuidado, verto água límpida sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto mas, se tocada por dedos bruscos num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada।
"Caio Fernando Abreu, Morangos Mofados

domingo, julho 26


Começo a conhecer-me। Não existo। Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram, Ou metade desse intervalo, porque também há vida... Sou isso, enfim... Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor। Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo। É um universo barato.


Fernando Pessoa




"De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam - só sombras, filhas dos móveis hirtos e da luz que me acompanha. Elas me rondam aqui ao sol, mas são gente".
(Bernardo Soares-Livro do देसस्सोस्सेगो)


Agora nesta hora inocente eu e a que fui sentamo-nos na soleira do meu olhar।

( Alejandra Pizarnik )


Eu insisto em bater na porta, entrar enquanto eles querem sair.
Não desisto e, não me permito desistir...
Tenho tempo. E esperanças....

Dizem que chorei três vezes no ventre de minha mãe.

Ninguén acredita quando digo que consigo voar por cima de ruas vazias, em terras que nunca nasci ou que adivinho palavras ainda não pensadas dentro das pessoas. Um dia ainda convido os deuses para vir tomar um café e tiro uma fotografia.

Sei que os gatos sonham com pombas azuis.

Eu,

Sonho com as distâncias enormes que consigo te percorrer na pele.

Viver é perigoso e por isso digo:

Todas as noites assassino meu coração enquanto decoro a geografia total das artérias
como se fossem as avenidas dos homens. A viagem interior é a maior viagem que um dia farei.

Amanhã quando acordar, vou tentar não me esquecer de usar o vestido vermelho e comprar um bilhete para onde nunca fui e onde já fui tudo.

E tu?

Se esperares mais um pouco, ainda consigo descobrir os horários dos barcos que se vão atravessar nos meus olhos enquanto escutas os pássaros que tenho à volta do coração.

Puxa a cadeira e fica à espera do sol ou então deixa-me só um pouco de silêncio...enquanto encostas a porta.

(Ana Saramago)