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domingo, outubro 29

Posso encontrar pelo corpo as marcas de todos aqueles que não me amaram quando eu precisava. Os sinais daqueles que de algum modo me feriram, destrataram, rejeitaram. Sim, meu corpo é um mapa de desamores. E nenhum desses desamores precisou me tocar para deixar digitais. É o não-toque que marca mais, que machuca mais fundo, que lacera da pele ao osso.

As marcas que eles deixaram eu mesmo fiz. Foi sempre assim. Cada vez que alguém não me achava digno, eu não me achava também. Cada vez que alguém me odiava, eu me odiava também. Cada vez que me abandonavam, eu me abandoava também. Desde o berço. A primeira marca, desenhada na perna esquerda.

Eu posso ler cada uma delas. Posso passar os dedos e tocar na minha pele as rejeições alheias. E se posso tocá-las, também posso apagá-las. Eu percebi, depois de 26 anos, que todo amor que eu procuro eu já tenho. Eu já tenho. Há alguém que esteve comigo nesses momentos todos, lambendo feridas, segurando minhas mãos, desmanchando maldades alheias. Houve alguém comigo naquela festa, naquele abraço de despedida. Houve alguém comigo naquela volta da escola, naquela noite sem sono, naquela cidade imunda. Cada vez que me feriram, ele esteve lá. Ele chorou comigo e me fez sorrir. Muitas, muitas vezes. 

Sim, essa é uma declaração de amor. Uma definitiva. Porque, finalmente, eu percebi que ele estará comigo até o fim. Os outros todos passam. Pessoas se vão, às vezes batendo as portas, às vezes batendo as botas. Mas ele não. Não importa o que eu faça. Não importa o que eu diga. Ele vai estar comigo. Ele vai precisar de mim. Estamos juntos agora, e isso é nosso final feliz. O amor é isso. É estar junto, é entender, é zelar. E eu quero fazer isso por ele, já que ele o fez por mim. Eu, que sempre o odiei, quero pedir perdão. Perdão pelas marcas, pelo sangue todo, pelas vezes em que o tratei como os outros lhe tratavam.

Perdão, porque eu levei 26 anos para entender que a pessoa da qual eu dependo e de quem eu nunca vou me afastar sou eu mesmo. Eu mesmo. Todo esse tempo e a resposta estava no espelho. 

Eu posso ser abandonado ou abandonar quem for. Eu posso ser rejeitado ou rejeitar quem for. Eu posso ser humilhado ou humilhar quem for. Mas eu sempre estarei comigo. Até o fim. E como pude odiar por tanto tempo alguém assim?

Hoje eu passei a mão pelo meu corpo, pelo meu mapa de desamores e consolei a mim mesmo. Depois delineei à caneta um novo sentido para cada traço. Se eu não amar quem está sempre junto comigo, por benção ou maldição, como vou me livrar do vazio que sempre senti? Sim, porque amor e vazio não podem coexistir em mim. O vazio sempre foi por falta de amor. Do amor mais fundamental. Do meu amor por mim. Fui eu quem me trouxe até aqui. Sou eu que me levarei de agora em diante. Então como não me amar? Como não me sentir seguro sabendo que não, que eu nunca vou me abandonar? Minha história sempre foi feita de abandonos. Entendem, então, porque eu preciso tanto dessa segurança que só agora encontrei?

Eu não sei de outro desbravamento que precisasse de uma navegação tão longa. Vinte e seis anos. Finalmente eu gritei “Terra à vista!”. Vinte seis anos. E só agora eu descobri que existo. Está na hora, portanto, de traçar novos mapas. De desamores nunca mais. Afinal, ninguém pode ser tão importante assim a ponto de mudar o que eu passei a sentir por mim.


“Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.
Clarice Lispector- A paixão segundo GH