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sábado, novembro 22



Este é um dos trechos mais bonitos do primeiro ato da peça, em que Orfeu sobressalta-se quando Eurídice lhe diz "Até, neguinho. Volto num instante".

Orfeu tem um mau presságio, e pede à amada que não o deixe.

Eurídice responde: "Meu neguinho, que bobagem! E' um instantinho só. Volto com a aragem..."

Orfeu:
Ai, que agonia que você me deu Meu amor! que impressão, que pesadelo!

Como se eu te estivesse vendo morta

Longe como uma morta...
Eurídice:Morta eu estou.Morta de amor, eu estou; morta e enterrada

Com cruz por cima e tudo!
Orfeu (sorrindo):Namorada!Vai bem depressa. Deus te leve. Aqui

Ficam os meus restos a esperar por tiQue dás vida!
(Eurídice atira-lhe um beijo e sai).


Mulher mais adorada!

Agora que não estás, deixa que rompa

O meu peito em soluços!

Te enrustiste

Em minha vida; e cada hora que passa

E' mais porque te amar, a hora derrama

O seu óleo de amor, em mim, amada...

E sabes de uma coisa?

cada vez Que o sofrimento vem, essa saudade

De estar perto, se longe, ou estar mais perto Se perto, - que é que eu sei!

essa agonia De viver fraco, o peito extravasado

O mel correndo; essa incapacidade

De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso

Que é bem capaz de confundir o espírito De um homem - nada disso tem importância

Quando tu chegas com essa charla antiga

Esse contentamento, essa harmonia

Esse corpo! e me dizes essas coisas

Que me dão essa fôrça, essa coragem

Esse orgulho de rei.

Ah, minha Eurídice Meu verso, meu silêncio, minha música!

Nunca fujas de mim! sem ti sou nada

Sou coisa sem razão, jogada, sou Pedra rolada.

Orfeu menos Eurídice...Coisa incompreensível!

A existência Sem ti é como olhar para um relógio

Só com o ponteiro dos minutos.

Tu És a hora, és o que dá sentido

E direção ao tempo, minha amiga

Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!

A beleza da vida és tu, amada

Milhões amada!

Ah! criatura!

quem Poderia pensar que Orfeu: Orfeu Cujo violão é a vida da cidade

E cuja fala, como o vento à flor Despetala as mulheres

- que êle, Orfeu Ficasse assim rendido aos teus encantos!

Mulata, pele escura, dente branco

Vai teu caminho que eu vou te seguindo

No pensamento e aqui me deixo rente

Quando voltares, pela lua cheia

Para os braços sem fim do teu amigo!

Vai tua vida, pássaro contente

Vai tua vida que eu estarei contigo!


Reproduzido do livro 'Orfeu da Conceição', Vinicius de Moraes, Livraria S. José, Rio, 1960.

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